6 de junho de 2011

Malabarismos com Números

Malabarismos com Números


A maioria dos adeptos de religiões fundamentadas na escatologia - entre elas, as Testemunhas de Jeová - não está familiarizada com os complexos cálculos envolvidos nas especulações proféticas que foram ensinadas a defender como verdade divinamente revelada. Ainda assim, estas pessoas mostram-se credulamente dispostas a defender o resultado de tais cálculos, a despeito de sua pouca familiariedade com eles e da ausência de evidências claras que lhes dêem sustentação. Este, indubitavelmente, tem sido o caso dos atuais defensores da cronologia de Russell, ou do que restou dela. É muito raro encontrar, nestes dias, uma Testemunha de Jeová que saiba explicar os fundamentos da cronologia dele - hoje totalmente alterada por seus sucessores. De fato, as datas de 1799 e 1874 não têm mais hoje qualquer significado no movimento. Da antiga tríade, apenas uma - 1914 - restou, provavelmente por aquele ano ter assistido a eclosão da I Guerra Mundial, algo, sem dúvida, notável, porém bem diferente do que se esperava. Do contrário, certamente teria naufragado - como tantas outras - no mar das previsões fracassadas. O ano de 1914 não trouxe Jesus Cristo nas nuvens nem o arrebatamento da igreja nem o Armagedom. Trouxe, isto sim, 4 anos de conflito armado, em lugar dos 1000 anos de paz que prometera.

Isto deveria nos induzir à reflexão...

Diante da infindável lista de autores e de previsões, desde os primeiros séculos até nossos dias, o leigo fica comumente atônito diante da multiplicidade de datas apontadas como biblicamente significativas, bem como dos cálculos escatológicos sobre os quais elas supostamente se apóiam. Especialmente considerando que a maioria dos autores reclamou para si, em maior ou menor grau, o reconhecimento de portadores de revelação divina. Neste respeito, Charles T. Russell não foi uma exceção.

Com o propósito de esclarecer o leitor quanto à futilidade de se tentar, à base do exame acadêmico das Escrituras, inferir esta ou aquela data como sendo o ponto de convergência das profecias, passo a expor algumas das passagens bíblicas de interesse, bem as diversas interpretações dadas a elas ao longo dos séculos pelos escatologistas - entre eles, Russell.

Texto período interpretação

Daniel 7: 25 "um tempo, tempos e metade de um tempo" 1 + 2 + 0.5 = 3,5 tempos

= 3,5 x 360 = 1260 anos

Daniel 8: 14 "2300 tardes e manhãs" 2300 anos

Daniel 9: 24-27 "70 semanas" 70 x 7 = 490 anos

Daniel 12: 11 "1290 dias" 1290 anos

Daniel 12: 12 "1335 dias" 1335 anos

Daniel 4: 16, 32 "7 tempos" 7 x 360 = 2520 anos

Apocalipse 11: 3 "1260 dias" 1260 anos

Nota: alguns autores aplicaram um período de 50 'jubileus', chegando a 2450 anos, ao invés de 2520.

Pergunta-se: onde se apóiam tais cálculos? Em lugar nenhum, exceto na intuição dos escatologistas, os quais fizeram - por conta própria - uma generalização sistemática do princípio dia-ano, explicitado nas Escrituras apenas em Números 14: 34 e Ezequiel 4:6, referindo-se à peregrinação do povo hebreu no ermo. Dão as escrituras qualquer indicação de que tal princípio aplicar-se-ia a todas as passagens proféticas onde a palavra "dia" aparece? Não, em parte alguma da Bíblia há qualquer indício de que tal equação escatológica constituísse a chave para o entendimento das figuras proféticas. Vemos, pois, que tais previsões assentam-se sobre uma base fragílima. E o mais importante, jamais - ao longo de quase 20 séculos de especulações - tal fórmula levou à concretização de qualquer um dos eventos apocalípticos. Assim, vemos que, ao lado de outras dificuldades - as quais analisaremos adiante - o escatologista precisa reconhecer que ninguém pode inferir com certeza o significado matemático das dezenas de passagens proféticas que falam de dias, meses e anos.

E quanto aos pontos de partida? Mesmo que alguém supostamente conseguisse decifrar o significado da dimensão de um período profético, seria, provavelmente aqui - no ponto inicial da contagem - que se encontraria a primeira grande dificuldade. Para provar meu ponto, passarei a tecer alguns comentários sobre os diversos pontos de partida já adotados por especuladores ao longo dos séculos.

Se contarmos desde o século 12 - quando o primeiro autor cristão, Joachim de Flora, começou a fazer cálculos escatológicos - até o século 20, verificamos que foram adotadas, como pontos históricos de partida, mais de 50 datas distintas!

Considerando apenas estas datas e os períodos destacados na tabela acima, chegamos à conclusão que são possíveis mais de 350 combinações! Em qual delas acreditará você, leitor?

Precisa ainda ser dito que haveria - ao lado da questão dos algarismos - uma dificuldade adicional: a interpretação dos textos. Este é um dos pontos mais controvertidos. Enquanto existe consenso em relação a algumas passagens bíblicas, outras permanecem obscuras. Há quase tantas interpretações quanto há teólogos e historiadores!

À guisa de exemplo, consideremos a previsão pioneira de John Acquila Brown, consistindo de um período de 2.520 anos, partindo de 604 AC - ano da ascensão ao trono de Nabucodonosor da Babilônia - até 1917 DC. Olhando atentamente para o ano de 1917, haveria algum evento que pudesse ser classificado como historicamente relevante? Houve, no mínimo, dois - a revolução comunista ('bolchevique') , na Rússia, em outubro daquele ano, e - mais importante - a assim chamada declaração Balfour de 2 de Novembro, pela qual o governo britânico, após tomar Jerusalém do império turco, declarou-se favorável ao estabelecimento da comunidade judaica na Palestina. Este segundo acontecimento foi, inclusive, apontado como biblicamente significativo por algumas comunidades religiosas, entre estas, a comunidade dos 'Estudantes da Bíblia' - nome das Testemunhas de Jeová, na época. Todavia, pode-se assegurar que Jesus Cristo, ao falar do sinal de sua Vinda, se referia especificamente a qualquer destes dois eventos? A resposta tem de ser não!

Outro exemplo: a previsão de W. Blackstone, partindo de 587 AC e chegando a 1934 DC, a qual tem - diferentemente da previsão de Nelson Barbour e Charles Russel - pelo menos, o mérito de partir de uma data bem estabelecida historicamente. Neste caso, pergunta-se: houve, em 1934, algum evento historicamente relevante? Pode-se dizer que sim, pois, naquele ano, com a morte do idoso Marechal Hindenburg, Adolf Hitler assumiu o posto de Chefe de Estado da Alemanha, muito embora tivesse sido nomeado para o cargo de Chanceler no ano anterior, 1933. Este foi um fato decisivo na dramática sequência de acontecimentos que culminariam na II Guerra Mundial. Entretanto, pode-se assegurar que Jesus Cristo, ao profetizar sobre sua vinda, se referia especificamente a este evento? Novamente, a resposta tem de ser não!

De modo análogo, o cálculo escatológico de Barbour - mais tarde adaptado por Russel - quando examinado à luz das evidências históricas, deixa bastante a desejar, tanto por apresentar um ponto de partida - 606 AC - totalmente órfão de comprovação histórica, quanto por coincidir com um evento - a guerra de 1914 - que, a exemplo de outros, absolutamente nada de positivo trouxe à já tão sofrida humanidade, algo que certamente seria de se esperar, pelo menos em algum momento da vinda do Senhor e do estabelecimento de seu Reino de Mil anos. Ademais, como nos casos anteriores, pode-se assegurar que era a I Guerra Mundial que Cristo tinha em mente ao profetizar sobre sua volta? Mais uma vez, a resposta é não!

Adicionalmente, uma curiosidade: considerando que as palavras de Cristo, em Mateus cap. 24 (versículos 15 em diante), parecem referir-se claramente a um tempo futuro, alguém poderia perfeitamente adotar, como ponto de partida da profecia, o ano da destruição de Jerusalém pelas tropas romanas - 70 DC - e, partindo daí, contar 2520 anos e cair no ano de 2590 - mais de quinhentos anos no futuro - como sendo aquele que marcará a volta do Senhor. Dificilmente uma previsão para um futuro tão distante despertaria algum interesse na geração atual. Contudo, se estivéssemos no século 26, é muitíssimo provável que tal data já estivesse sendo cogitada pelos movimentos religiosos alicerçados na escatologia - sem dúvida o caso das Testemunhas de Jeová.

Assim, conforme vemos, a partir desta simples análise, qualquer data pode probabilisticamente coincidir com um fato histórico relevante, já que tais fatos acontecem, em maior ou menor grau, praticamente em todos os anos. Todavia, se considerarmos a famosa passagem bíblica de Apocalipse, capítulo 6 - os 'quatro cavaleiros' - vemos que, ao passo que os escatologistas costumeiramente apontam para o 'cavalgar' da guerra, da fome e da morte como evidência da precisão de seus cálculos e datas, estranhamente, eles não fornecem nenhum sinal claro e incontestável do 'cavalgar' do "rei vitorioso" desta mesma profecia - considerado símbolo de Jesus Cristo entronizado. Ante a falta de tais evidências, alguns, como Barbour e Russel, viram-se forçados a recorrer ao artifício de propor uma 'presença' invisível!

Diante do que foi exposto, volto a perguntar: valerá a pena insistir com tais cálculos? Devem os cristãos exercer sua religião com tais previsões em mente? Será que o 'estar vigilante' - argumento costumeiramente utilizado pelos autores de previsões fracassadas - justificaria tais aventuras escatológicas e suas temíveis consequências?

Deixo as respostas ao bom senso do leitor.

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