6 de junho de 2011

O Começo de Tudo

O Começo de Tudo


No princípio do século 19, um pastor batista de New york, EUA, William Miller (nascido em Massachussets, 1782) dedicou-se ao estudo da escatologia - estudo das profecias sobre o 'fim do mundo' - buscando prever a data da segunda vinda de Cristo. A partir da leitura de Daniel 8: 14, onde se diz, "...Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado", Miller reacendeu a discussão de um tema já bastante controvertido - a habilidade, com base na interpretação das Escrituras, de prever eventos futuros, iminentes e espetaculares. Estavam assim lançadas as sementes do que se convencionou chamar Segundo Adventismo. O movimento das Testemunhas de Jeová guarda estreita relação com esta corrente, de modo que temos de estabelecer aqui nosso ponto de partida.

A interpretação dos livros bíblicos de Daniel e Apocalipse não era algo novo nos dias de Miller. Na verdade, estes textos tinham despertado o interesse de estudiosos de religião por séculos antes dele ter nascido, o que acabou por gerar toda uma corrente (quase contínua) de teorias interpretativas, começando com aquelas do Judaísmo do primeiro século, na pessoa do rabino Akibah Ben Joseph (50 - 132 DC), e passando pelo Catolicismo medieval, a Reforma e, finalmente, o Protestantismo anglo-americano do século 19. O primeiro estudioso cristão a fazer especulações proféticas sobre a vinda do Messias, servindo-se dos mesmos métodos de cálculo dos rabinos do primeiro século, foi Joachim de Flora, no ano de 1195 DC. Não seria o único - do início século 12 ao início do século 19, cerca de 35 autores continuariam a especular e propor datas para o cumprimento das profecias bíblicas. De modo que Miller foi um continuador, não o criador do milenarismo - a corrente religiosa cujo cerne consiste nos preparativos para o Reino de mil anos de Nosso Senhor, mencionado em Apocalipse 20: 4. Um longo desfile de especuladores sobre o "fim do mundo" - entre eles, Charles T. Russell - ainda se seguiria a Miller , anos no futuro, juntando-se a outras dezenas, antes dele. O conhecimento deste panorama histórico nos ajuda a compreender aquele que talvez seja o aspecto distintivo das Testemunhas de Jeová - a ênfase na escatologia milenarista - pois foi na efervescente atmosfera do período pós-millerismo do século 19 que o movimento teve seu berço.

Não é objetivo deste artigo descrever pormenorizadamente a história das interpretações de profecias bíblicas quanto à 'Segunda Vinda de Cristo'. Mencionarei apenas aquilo que julgar relevante na nossa reconstituição do panorama histórico-religioso onde floresceu a entidade que é alvo de nosso estudo. Para mais detalhes sobre o tema 'escatologia', inclusive aquela sustentada até hoje pelas Testemunhas de Jeová, recomendo a leitura da obra The Gentile Times Reconsidered [Os Tempos dos Gentios Reconsiderados], de autoria de Carl Olof Jonsson (3a. edição, Commentary Press, Atlanta). Trata-se de obra séria e profunda, produto de mais de uma década de pesquisas. Submete o assunto ao escrutínio histórico e põe por terra mitos.

Carl O. Jonsson - a escatologia em cheque

De volta aos trabalhos de Miller, ele utilizou o princípio do "dia-ano", mencionado explicitamente na Bíblia com referência apenas aos textos de Números 14: 34 e Ezequiel 4:6. Tal método começou a ser aplicado por rabinos judeus a outras passagens e foi formalmente estabelecido como princípio pelo rabino anteriormente mencionado, Ben Joseph. Assim, Miller "calculou" que os 2.300 dias de Daniel 8: 14 representavam 2.300 anos. Tudo de que precisava, então, era um ponto de partida. Ele adotou como tal o ano de 457 AC, data do regresso de Esdras do cativeiro. Contando, pois, 2.300 anos a partir desta data, Miller chegou ao ano de 1843 como aquele que veria o retorno de Cristo à terra. A previsão fora feita no ano de 1818. Posteriormente - em 1842 - ele publicaria um cálculo diferente, contando 2.520 anos, mas preservando a data-chave de 1843. Restava, portanto, pouco tempo antes que tal acontecimento extraordinário tivesse lugar. Qual o efeito de tais previsões sobre os contemporâneos de Miller?

O impacto de tal revelação foi bem além do que Miller poderia prever - crentes de diversas igrejas levaram tal previsão por demais a sério, sendo que muitos doaram suas propriedades, abandonaram suas atividades cotidianas e prepararam-se para recepcionar Jesus Cristo. No entanto, a data chegou e o tão aguardado evento não se deu. Miller, então, revisou seus cálculos e concluiu que errara em um ano, marcando o acontecimento para o ano seguinte, ou seja, 1844, mais especificamente para o mês de março. Tendo novamente decepcionado a si próprio e a seus seguidores - cerca de cem mil - Miller ainda faria uma última tentativa, marcando a vinda de Cristo para outubro daquele ano. Todavia, um novo desapontamento demoveu-o definitivamente da idéia de antever tal portentoso evento. Sobre isso, o próprio Miller escreve:

"Acerca da falha da minha data, expresso francamente o meu desapontamento...Esperamos naquele dia a chegada pessoal de Cristo; e agora, dizer que não erramos, é desonesto! Nunca devemos ter vergonha de confessar nossos erros abertamente." (O grifo é meu)

(A História da Mensagem Adventista, pág. 410)

Não se pode deixar de reconhecer humildade e candura nas palavras de Miller, ainda mais considerando que sua conduta, a partir de então, veio a corroborar suas palavras. Entretanto, involuntariamente, ele, por assim dizer, 'fez escola'. Miller acendeu um pavio que não podia apagar. Não obstante tivesse reconhecido seu erro, diversos de seus anteriores seguidores insistiram em marcar o dia para a vinda de Cristo, entre eles, os grupos liderados por Joseph Bates, Helen White e Hiram Edson, de cuja fusão nasceu a Igreja Adventista do 7o. Dia. Como passou Miller a encarar a escatologia que se seguiu ao seu trabalho? Ele diz:

"Não tenho confiança alguma nas novas teorias que surgiram no movimento..."

(A História da Mensagem Adventista, pág. 412)

Por fim, morreu Miller, no ano de 1849, aos 68 anos de idade. Apenas três anos depois, em 16 de Fevereiro de 1852, em Allegheny-Pensilvânia, nascia Charles Taze Russell, filho do casal Joseph L. Russell e Anna Eliza Russell. O jovem Charles foi criado como presbiteriano e passou a maior parte de sua infância entre as cidades de Allegheny e Pittsburgh, no estado onde nasceu. Sua mãe o encorajou, na infância, a considerar o ministério Cristão, mas faleceu quando ele tinha apenas 9 anos de idade. Sua educação foi modesta, a partir de escolas públicas e suplementada por estudos com tutores particulares. Seu pai, um comerciante experiente, treinou o filho para ser seu sócio nos negócios, função esta que Charles passou a desempenhar já aos 11 anos, em uma loja de confecções masculinas. Nesta época, parecia demonstrar mais talento para o comércio do que para a religião. Por força das obrigações de trabalho, ele acabou abandonando os estudos aos 14 anos e tornou-se, nos próximos anos, um próspero empresário no ramo de confecções, ampliando o negócio do pai até tornar-se uma cadeia de lojas. Apesar de sua criação como presbiteriano, veio a filiar-se à Igreja Congregacional, por esta estar mais de acordo com seus conceitos na época.

A despeito de seu sucesso como comerciante, o jovem Russell manifestava fortes pendores para a religiosidade. Ainda garoto, era um devoto Calvinista, tendo chegado ao ponto de afixar panfletos em lugares públicos, advertindo os infiéis sobre o fogo do inferno. Esperava, com isso, induzir os trabalhadores a mudarem seu estilo de vida. Agora, ao passo que Russell pertencia à Igreja Congregacional, seu pai voltara-se para o Adventismo. Aos 16 anos de idade, Russell passou a inquietar-se com relação a diversas doutrinas comumente aceitas em seu tempo. Ante a ineficácia de suas tentativas em converter 'infiéis' às suas crenças, acabou por perder a fé na Bíblia. Contudo, não conseguiria fugir por muito tempo daquilo que parecia ser seu talento natural. Uma certa noite, no ano de 1869, um acontecimento deu novo impulso em sua vida. Caminhando pela rua de uma de suas lojas, ouviu o som de um canto, um hino religioso, o qual atraiu-lhe a atenção. De onde provinha? De um culto Adventista. O pregador nesta noite era o pastor Jonas Wendell. O próprio Russell descreve o encontro assim:

"Como que por acaso, certa noite visitei uma sala poeirenta e mal-iluminada, onde eu ouvira dizer que se realizavam cultos religiosos, para ver se o punhado de pessoas que se reunia ali tinha algo mais sensato a oferecer do que as crenças das grandes religiões. Ali, pela primeira vez, ouvi algo sobre os conceitos dos Adventistas [Igreja Cristã do Advento], sendo o Sr. Jonas Wendell o pregador...Assim, reconheço estar endividado com os adventistas e com outras denominações. Embora a exposição bíblica feita por ele não fosse inteiramente clara,... foi o suficiente, sob a orientação de Deus, para restaurar minha abalada fé na inspiração divina da Bíblia..., embora o Adventismo não me tenha ajudado em nenhuma verdade específica, ajudou-me grandemente a desaprender erros, e assim me preparou para a Verdade."

(Watchtower, 1906, reimpressão)

Não se pode deixar de notar um certo paradoxo em que um sermão "não inteiramente claro" e que não continha "nenhuma verdade específica" pudesse servir de alicerce para a restauração da fé de alguém. A partir daí, Russell, com apenas 18 anos, formou seu próprio grupo independente de estudos, o qual acabou por formar um movimento à parte, elegendo-o, seis anos depois, como seu "pastor". Contudo, ele contou com a contribuição de outros dois adventistas, George Stetson e George Storrs. O primeiro era ministro do Adventismo Cristão e o segundo, ex-ministro da Igreja Episcopal e um dos fundadores do movimento 'União da Vida e do Advento' (com o qual veio a romper, tempos depois) e autor do periódico Bible Examiner [Examinador da Bíblia]. Destes dois, indubitavelmente foi Storrs o que mais influenciou as idéias de Russell.

George Storrs tinha estado envolvido com o movimento de William Miller, já mencionado anteriormente, mas dele afastou-se após os sucessivos fracassos nas previsões para a volta de Cristo. A partir da leitura de um tratado, em 1837, elaborado por um ex-pastor batista, Storrs veio a tornar-se adepto do 'condicionalismo', a saber, a tese segundo a qual o homem não possui uma alma imortal, mas os mortos estão inconscientes e à espera de ressurreição, sendo que imortalidade é um dom adquirido, sob a condição de que o ser humano o obtenha de Deus por meio de Cristo. Ele também advogava o ensino de que os mortos em ignorância, teriam uma oportunidade de se redimirem diante de Cristo por meio de uma ressurreição terrestre. Não é difícil, pois, saber de onde Russell obteve a matéria-prima para suas doutrinas da mortalidade da alma e da restauração do paraíso terrestre. É bem provável que Russell também tenha herdado de Storrs sua aversão por igrejas e organizações religiosas. Russell não seria o único a ser influenciado por Storrs. Há indícios que sua associação com diversos grupos religiosos - em especial, adventistas - tenha contribuído para que estes também tenham adotado a doutrina do 'condicionalismo'. De fato, ela está presente, até hoje, nas doutrinas da União da Vida e do Advento - fundada pelo próprio Storrs - da Igreja Cristã do Advento, da Igreja Mundial de Deus e, naturalmente, das Testemunhas de Jeová.

Não se deve subestimar o grau de influência de Storrs sobre o movimento Adventista, pois, além dos aspectos mencionados, há ainda um último legado dele a Russell - a piramidologia. Em 1876,o professor C. Piazzi Smyth - um astrônomo e piramidólogo anglo-israelita - publicou um artigo sobre este tema no periódico de Storrs, Bible Examiner. Algum tempo depois, o próprio Storrs escreveu artigos sobre piramidologia no periódico Herald of Life and the Coming Kingdom [Arauto da vida e da Vinda do Reino]. Na sequência, o "pastor" Russell, dedicaria, em 1897, um capítulo inteiro de uma de suas obras - o volume III de Studies in the Scriptures [Estudos das Escrituras] - ao significado das medidas da Piramide de Gizé quanto ao cumprimento das profecias bíblicas. Não seria o único. Por esta época, tais crenças grassavam entre diversos seguimentos do Segundo Advento.

É também digno de nota que o próprio Russell fala da convivência com George Storrs e Stetson como o tendo conduzido "passo a passo, a esperanças para o mundo, mais verdes e brilhantes" (Watchtower, 1906, pág. 3821). Em 9 de outubro de 1879, Stetson morreu e foi Russell quem realizou, a pedido, o sermão fúnebre. Seu falecimento mereceu, inclusive, menção na principal publicação de Russell, na qual ele se refere a seu colaborador e instrutor como "irmão de notável habilidade".

Em 1876, Russell faria um derradeiro e decisivo contato, do qual importaria mais alguns conceitos-chave que, somados aos anteriores, formariam o arcabouço de sua teoria doutrinária e a bandeira de sua cruzada missionária. Trata-se de Nelson Barbour, que, assim como George Storrs, também fora um seguidor de William Miller, e que, agora, liderava um grupo independente em Rochester, N. York. Sua publicação, Herald of the Morning [Arauto da manhã], chegou às mãos de Russell numa manhã de Janeiro daquele ano. Os conceitos ali expressos eram:

a) A vinda de Cristo seria invisível.

b) Cristo estava presente.

c) Esta presença havia acontecido em 1874.

Nenhum dos conceitos era novo. Já no século dezessete, Sir Isaac Newton lançou a idéia de uma "vinda invisível". Em 1856, Joseph Seiss - um pastor luterano da Pensilvânia, adepto da piramidologia - "burilou" estes conceitos, dividindo a vinda de Nosso Senhor em duas etapas, uma visível e uma invisível - idéia defendida até hoje pelas Testemunhas de Jeová. Em continuação, o cristadelfiano Benjamin Wilson, em 1844, passou a traduzir "vinda" [parousia] por "presença", em sua tradução da Bíblia, conhecida como Emphatic Diaglott. Um leitor das publicações de Barbour chamou-lhe a atenção para este fato e, a partir daí, ele adotou esta doutrina definitivamente.

Quanto a 1874, Barbour não deduziu tal data sozinho, mas com base em um artigo da obra Horae Apocalypticae, de autoria de Elliot, encontrada na biblioteca do Museu Britânico, em 1860. Mais adiante, examinaremos alguns pormenores deste assunto.

Assim sendo, em 1876, Barbour, quase 30 anos mais velho - com a mente repleta de idéias aparentemente herdadas de seu antigo mestre, Miller - foi convidado a um encontro com Russell, o qual aconteceu pouco depois em Filadélfia. Sobre este encontro, Russell falaria, mais tarde: "...Ele veio e a evidência me satisfez". Assim, ao final da reunião, o mais velho, Barbour, conseguiu convencer o mais moço, Russell, da correção de seus cálculos escatológicos. A partir daí, Russell, o qual tinha - segundo suas próprias palavras - "desprezado a cronologia por causa do uso errado dela pelos adventistas", ironicamente assumiu ele próprio, com base nas idéias de um adventista - Nelson Barbour - o "timão" do velho barco pilotado por William Miller, quase 60 anos antes dele, e naufragado há mais de 30 anos.

G. Storrs e N. Barbour - As maiores influências de Russell

1799, 1874 e 1914 - As Datas Marcadas

Início

O encontro com Nelson Barbour constituiu, sem dúvida, um divisor de águas na carreira do jovem Russell. Anteriormente voltado para a questão doutrinária sobre o sacrifício de Jesus Cristo e algumas crenças básicas secularmente aceitas pelas igrejas "organizadas", como ele dizia, as quais supostamente impediam o retorno ao Cristianismo simples do primeiro século, Russell, a partir deste ponto, enveredou pela mesma trilha de tantos outros, antes e depois dele. Paradoxalmente, talvez esta mudança tenha sido a maior força e, ao mesmo tempo a maior fraqueza de seu ministério. Debruçando-se sobre trechos distintos das Escrituras e aproveitando cálculos escatológicos já publicados - entre eles, o de John Acquila Brown, em 1823 e o de Nelson Barbour, em 1875 - Russell adotou o mesmíssimo princípio "dia-ano" dos rabinos do primeiro século, aplicando-os arbitrariamente a certas passagens bíblicas, até chegar a sua tríade de datas: 1799, 1874 e 1914.

A esta altura, é útil reconstituir a trajetória de Nelson Barbour, posto que fora ele que, por assim dizer, "passara o bastão" da escatologia a Charles Russell. Como já vimos, ele fizera parte do movimento millerista, tendo dele se afastado após o fiasco de 1844. De modo que, desapontado, passou a buscar outros alvos em sua vida. Viajou para a Austrália, onde trabalhou por algum tempo como mineiro. Em 1859, durante uma viagem marítima para os E.U.A. - como que não resistisse à sua inclinação natural - começou a reler as profecias bíblicas e pensou ter descoberto o erro de Miller, ou seja, o ponto de partida para a contagem dos "dias" da profecia de Daniel estaria errado em 30 anos. A data correta para a volta de Jesus Cristo seria 1874, e não 1844. Chegando a Londres em 1860, visitou a biblioteca do Museu de Londres e, lá, encontrou a obra Horae Apocalypticae e, nela, uma tabela com os cálculos do Reverendo Christophen Bowen, os quais levariam ao ano de 1874 como aquele que marcaria os 6.000 anos de criação do homem. Isto só reforçou as convicções de Barbour, no sentido de que seus cálculos, agora sim, seriam os corretos. Indiferente aos sucessivos fracassos daqueles que o antecederam, ele começou a divulgar seus achados, a partir de 1868 - época em que o jovem Russell vagava sem fé, um ano antes de assistir o sermão do pastor Jonas Wendell, o qual mudaria sua vida, e dois anos antes dele formar seu grupo de estudos.

Barbour publicou, então, diversos panfletos sobre sua teoria, incluindo o Evidences for the Coming of the Lord in 1873 [Evidências da Vinda do Senhor em 1873] , publicado em 1870, até o lançamento de uma publicação mensal, The Midnight Cry [O Grito da Meia-noite], em 1873, ou seja, apenas cerca de um ano antes da tão esperada data. Só que, assim como foi para William Miller e muitos que o antecederam, a chegada de 1874 nada trouxe, além de desapontamento. Todavia, o obstinado Barbour não se daria por vencido. Valendo-se da forma com que Benjamin Wilson vertia a palavra parousia (Mateus 24 : 37,39), referindo-se a Jesus Cristo, por "presença", e não "vinda", Barbour insistiu na correção de seus cálculos, não abrindo mão da data de 1874, mas mudando apenas a forma com que Cristo retornaria - invisivelmente. Deste modo - sustentava ele - Cristo estava "presente" desde 1874. Convicto da veracidade de tal evento, ao mesmo espetacular e, paradoxalmente, despercebido pelo mundo inteiro, no ano seguinte, 1875, Barbour mudaria o nome de sua publicação The Midnight Cry [O Grito da Meia-noite] para outro mais apropriado, Herald of the Morning [Arauto da manhã], o mesmo que - no ano de 1876 - chegaria às mãos de Russell e motivaria o encontro entre os dois. Não se pode negar que, vistas por este ângulo, as coisas ficariam mais convenientes, afinal, uma presença "invisível" é algo difícil de se atestar ou contestar...

Assim, ainda no ano de 1876, após o encontro com Barbour, Russell escreveu um artigo que foi publicado no periódico de George Storrs, ou seja, Bible Examiner, sob o título "Tempo dos Gentios: Quando Eles Terminam?". Neste artigo, ele defendia a tese de que os 2.520 "dias" da profecia de Daniel iam de 606 AC a 1914 DC, data em que findariam os assim chamados "Tempos dos Gentios" (Lucas 21: 24). Tratava-se de uma previsão inédita? Absolutamente não. Nelson Barbour já havia publicado a mesmíssima previsão no ano anterior, em seu periódico Herald of the Morning [Arauto da Manhã].

O ano de 1877 assistiu à fusão dos grupos de Pittsburgh - liderado por Russell - e de Rochester - liderado por Barbour. Os dois, com a cooperação de outro associado de Barbour - John Paton - iniciaram um trabalho de divulgação ombro-a-ombro, o qual se materializou na obra Three Worlds [Três Mundos], da autoria de Barbour, mas com o apoio intelectual e financeiro de Russell, o qual, também neste ano, publicaria o panfleto The Object and Manner of Our Lord's Return [O Objeto e Maneira da Volta de nosso Senhor]. Além disso, ele passou a aparecer como co-editor da publicação Herald of the Morning [Arauto da Manhã], ao lado de Barbour e Paton. Todavia, esta seria uma união que duraria pouco.

Um dos pontos que o livro de Barbour destacava era que o ano de 1878 seria marcado pelo arrebatamento dos 'santos' ao céu. Quando tais esperanças não se materializaram, ocorreu o primeiro cisma no ministério de Russell, com muitos deixando o movimento. Ao passo que Russell permanecia apegado à teoria da 'invisibilidade' - adotada após o fiasco de 1874 - este novo desapontamento exerceria sobre Barbour um efeito análogo ao que William Miller experimentara 34 anos antes. Não era de supreender que fôsse assim, já que se tratava da quinta desilusão religiosa em sua vida - 3 delas no seu tempo de millerista e 2 consigo próprio - coisa pela qual Russell, mais jovem e menos experiente, não passara. De modo que foi impelido em outras direções. Isto não tardou a produzir discordâncias doutrinais francas e abertas entre eles, o que culminaria com o rompimento da parceria.

No ano de 1879 - em meio a uma troca de acusações - Russell retirou-se oficialmente da sociedade , acompanhado de Paton, com o qual também romperia, tempos depois. Agora o então 'pastor' Russell achava-se financeira e mentalmente pronto para lançar as bases de seu próprio movimento, por meio da criação de um periódico - Zion´s Watch Tower and Herald of Christ´s Presence [Torre de Vigia de Sião e Arauto da Presença de Cristo], datado de Julho de 1879. Esta publicação, anos à frente, passaria a se chamar simplesmente WatchTower [A Sentinela], a literatura mais popular das Testemunhas de Jeová. Cinco anos depois, Russell, registraria oficialmente a Zion´s Watch Tower Tract Society [Sociedade Torre de Vigia de Tratados de Sião] , na Pensilvânia. Esta corresponde atualmente à Watchtower Bible and Tract Society [Torre de Vigia de Bíblias e Tratados], em Brooklyn, New York, além da sede na Pensilvânia.

Zion's Watch Tower - o primeiro periódico de Russell

Durante o restante de seu ministério, até o ano de sua morte - 1916 - Russell apegar-se-á tenazmente à significância das datas 1799, 1874 e 1914, as duas últimas aprendidas com seu ex-parceiro, Barbour. E quanto à primeira?

Bem, até aqui, vimos que Russell, em seu encontro com Barbour, aceitara a tese da "presença" invisível de Cristo, desde 1874. Também vimos que, um ano depois de Barbour ter publicado tais doutrinas, ele reproduziu, em um artigo, a mesma tese, a qual apontava para 1914 como o fim dos "Tempos dos Gentios" . Quanto ao ano de 1799 - esta data foi altamente significativa para os estudiosos de profecias do século dezoito. Com quase um século de antecedência, o livro The Rise and Fall of Papacy [Ascensão e Queda do Papado], de autoria de Robert Fleming, previa a queda da monarquia francesa e do poder papal para 1794. Embora esta data não tenha sido de todo precisa, caiu bem dentro da Revolução Francesa (1789-1798), período aceito pela maioria os historiadores como um ponto de virada na história humana. Em razão disso, durante a revolução, o livro foi reimpresso na Inglaterra e na América. Em 1798, deu-se um acontecimento espetacular: o Papa foi deposto e exilado pelas tropas de Napoleão Bonaparte, parecendo confirmar a previsão de Fleming. Em vista do significado do poder papal para os dissidentes da Igreja Católica e os estudiosos de profecias bíblicas, o movimento adventista adotou, então, a data de 1798 como o começo do "tempo do fim", sendo mantida ainda hoje pelos Adventistas do 7o. Dia. Charles Taze Russell incluiu-se entre os que aceitariam este ponto da história como sendo biblicamente significativo, modificando ligeiramente a data para 1799.

Assim, com ideais de renovação cristã na bagagem, mais o combustível da escatologia milenarista, estavam lançadas as bases da cruzada missionária de Russell, a qual atravessaria a virada do século vinte, até nossos dias.

Cronologia do Russellismo

Início

Neste ponto, julgo conveniente expor uma ordem cronológica dos eventos até aqui estudados, de modo a que você, leitor, possa estabelecer uma relação de causa e efeito desde os primórdios do adventismo até o início do ministério de Charles Taze Russell, o fundador do movimento das Testemunhas de Jeová:

1782- Nasce, nos E.U.A., William Miller, o futuro idealizador do Segundo Adventismo; antes, porém, ele se tornaria um pastor batista.

1798- As tropas de Napoleão Bonaparte capturam e exilam o papa, parecendo confirmar a previsão de Robert Fleming, feita quase um século antes. No futuro , diversos líderes do Segundo Advento, incluindo Charles Russel, considerarão tal evento como biblicamente significativo - o início do "Tempo do Fim".

1818- Miller prevê a Vinda de Jesus Cristo para 1843; milhares tornar-se-iam seus seguidores.

1823- John Acquila Brown publica, em Londres, um cálculo escatológico pioneiro - de 2.520 anos - partindo de 604 AC e chegando a 1917, como o fim dos "sete tempos" de Daniel, capítulo 4. Contudo, ele não relaciona tal data aos "Tempos dos Gentios" (Lucas 21: 24). Como seu cumprimento se situa quase um século à frente, não tem a mesma popularidade das idéias de Miller. Décadas no futuro, Nelson Barbour se servirá destes mesmos cálculos e, por sua vez, os transmitirá a Russell, que ainda nem nasceu.

1837- George Storrs, um ministro da Igreja Episcopal, lê o tratado de um ex-pastor batista (Henry Grew), e torna-se adepto da crença da alma mortal. Anos no futuro, ele exercerá forte influência sobre Russell - neste e noutros assuntos.

1840- Storrs deixa a Igreja Episcopal.

1842- William Miller publica suas previsões; Storrs torna-se seu seguidor ; Nelson Barbour também se juntaria ao movimento.

1843- A Vinda do Senhor não acontece e Miller refaz seus cálculos, transferindo a data para março do ano seguinte. Também neste ano, George Storrs cria o periódico Bible Examiner [Examinador da Bíblia].

Março de 1844- Novamente fracassa a previsão e Miller tenta, ainda mais uma vez, corrigir seus cálculos, marcando o retorno de Cristo para outubro daquele ano.

Outubro de 1844- Um novo fracasso faz Miller desistir por completo de estabelecer datas para a volta de Jesus Cristo e o início do milênio. Nelson Barbour, George Storrs, assim como muitos outros - desapontados - deixam o movimento. O primeiro "perde sua religiosidade" e vai para a Austrália, trabalhar como mineiro. O segundo, associa-se com outros grupos adventistas, até fundar o seu próprio - 19 anos à frente.

1849- Morre William Miller, deixando atrás de si um movimento de especulações proféticas sobre o Advento do Senhor, o qual prosseguiria por toda a segunda metade do século 19, até nossos dias.

1852- Nasce, na Pensilvânia-E.U.A., Charles Taze Russell, aquele que, um dia, se tornaria o fundador do movimento Estudantes da Bíblia - primeiro nome das Testemunhas de Jeová. Desde a infância, fora educado como presbiteriano e, anos depois, se afiliaria à Igreja Congregacional.

1859- Em uma viagem marítima de volta aos Estados Unidos, Nelson Barbour começa a reler as profecias e os trabalhos de Miller e conclui que seu ex-mestre errou em 30 anos.

1860- Barbour visita a biblioteca do Museu Britânico e, lá, lê a obra Horae Apocalypticae, concluindo que a volta do Senhor se daria em 1874, o ano 6000 da criação de Adão. Nesta época, Russell era apenas uma criança de 8 anos.

1863- George Storrs funda o movimento The Life and Advent Union [União da Vida e do Advento]. Enquanto isso, a fusão de três grupos de ex-milleristas origina o Adventismo do 7o. Dia. O pequeno Charles, com apenas 11 anos de idade, já trabalha junto ao pai em uma loja de confecções masculinas.

1868- Barbour começa a divulgar suas idéias sobre o ano de 1874; nesta época, o jovem Russell, com apenas 16 anos, perambulava, sem fé. Não obstante, toda a estrutura doutrinária e escatológica que ele, um dia, abraçaria, já estava formada - a partir das idéias de clérigos luteranos, batistas, metodistas, cristadelfos e adventistas.

1869- Após anos de sucessivos desapontamentos religiosos, os quais o tinham levado à perda de sua fé, o jovem Russell, então com 17 anos, reencontra sua espiritualidade, depois de assistir o sermão do pastor Jonas Wendell, em um culto adventista, improvisado em uma pequena sala de reuniões, na rua de sua loja.

1870- Barbour publica o panfleto Evidences for the Coming of the Lord in 1873 [Evidências da Vinda do Senhor em 1873] e The Midnight Cry [O Grito da Meia-noite]. Enquanto isso, Russell, então com 18 anos, forma seu grupo independente (Pittsburgh).

1871- George Storrs rompe com o próprio movimento que criou, a União da Vida e do Advento. Por volta desta época Russell faria contato com ele e absorveria diversos de seus conceitos, entre eles, a mortalidade da alma e a ressurreição terrestre.

1874- A previsão de Barbour não se cumpre e ele - diferentemente de seu antigo mestre, Miller - decide insistir com a data, alterando apenas a "forma" do "cumprimento" de sua previsão - "invisível".

1875- Nelson Barbour publica, em seu periódico Herald of the Morning [Arauto da Manhã], seus cálculos, partindo de 606 AC e chegando a 1914 como o fim dos "Tempos dos Gentios". Até hoje, a maioria das Testemunhas de Jeová supõe que fora Russell o pioneiro desta doutrina.

1876- Piazzi Smyth escreve um artigo sobre piramidologia no periódico Bible Examiner [Examinador da Bíblia], suscitando o interesse de George Storrs no assunto, o qual compartilhará seus achados com Russel. Ainda neste ano, um número do periódico de Barbour chega às mãos de Russell e eles se encontram. Deste encontro, eles se associam e passam a defender as mesmas idéias. Russell - que, até então, não se mostrava interessado em cronologia - publica, também no periódico de Storrs , uma matéria reproduzindo o mesmíssimo cálculo que Barbour publicara um ano antes.

1877- É lançado o livro Three Worlds [Três Mundos], de autoria de Nelson Barbour, com apoio de Russell. O livro proclama a esperança do arrebatamento celestial dos 'fieis' para 1878. Russel publica The Object and Manner of Our Lord's Return [O Objeto e Maneira da Volta de nosso Senhor].

1878- O tão esperado arrebatamento não acontece e Barbour, frustrado, desiste de novas previsões e revê a doutrina do resgate de Cristo. Russell discorda dele e insiste na teoria da 'invisibilidade'.

1879- Morre George Storrs. Também neste ano, Russell e Barbour se desentendem e a parceria chega ao fim; Russell cria o periódico Zion´s Watch Tower and Herald of Christ´s Presence [Torre de Vigia de Sião e Arauto da Presença de Cristo]. A partir deste ponto, ele segue seu ministério sozinho.

1884- Russell funda oficialmente a entidade Zion´s Watch Tower Tract Society [Sociedade Torre de Vigia de Tratados de Sião]. A piramidologia e as datas 1799, 1874 e 1914 farão parte de suas pregações até sua morte, em 1916.

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